O título acima é de um artigo assinado pelo arquiteto Moacyr Gomes da Costa, responsável por algumas das obras que povoam a paisagem natalense há várias décadas - entre elas, o estádio Machadão e o Centro Administrativo, fadados ao desaparecimento com o mirabolante projeto da Arena das Dunas.
Confiram o texto, publicado no blog Vi o Mundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha.***
Quando a CBF expediu convites a algumas cidades brasileiras para apresentarem suas candidaturas como sedes e sub-sedes da Copa de 2014, houve justificável alvoroço de todas elas em apresentarem suas propostas a qualquer preço, diante da possibilidade de participarem de um dos maiores espetáculos do planeta, que é também um dos melhores "negócios" da atualidade.
Natal, por exemplo, mandou para a CBF, em maio de 2007, um estudo preliminar de adequação do seu estádio olímpico "Machadão", atendendo integralmente aos padrões requeridos pela FIFA, com a preocupação de executá-lo ao menor preço possível, tendo em conta as limitações financeiras do Estado e do Município.
Em setembro de 2008, já com o aval dos Governos do Estado e do Município de Natal, o referido estudo foi novamente apresentado em seminário patrocinado pela CBF, no Rio de Janeiro, oportunidade em que foram debatidos os detalhes dos documentos enviados no ano anterior e, ao mesmo tempo, oferecendo oficialmente o estádio "Machadão" como a "Arena" que representaria Natal na Copa de 2014, após passar pelas adequações necessárias, conforme os padrões recomendados pela FIFA.
Logo após o citado seminário, o Comitê criado pelo Governo do Estado e presidido pelo seu Secretário de Turismo, resolveu em segredo e, portanto, sem apresentar explicações convincentes, descartar o projeto do "Machadão" anteriormente apresentado. Decidiu ainda, o mesmo comitê, sem o exigido conhecimento público, contratar duas empresas de consultoria e de projetos arquitetônicos, sem licitação e pelo preço extorsivo de R$ 3,6 milhões, para assessorá-lo e desenvolver o tema em questão. O valor do contrato referido representa verdadeiro escárnio a uma comunidade onde seus habitantes morrem sistematicamente nos corredores dos hospitais públicos.
Como primeiro produto do referido contrato, as empresas contratadas apresentaram a insólita e estarrecedora proposta de demolir o estádio "Machadão" alem de todas as edificações existentes no seu entorno, em destaque o ginásio Humberto Nesi ("Machadinho"), o Centro Administrativo do Governo do Estado, um Grupo Escolar, uma Creche, entre outros, que juntos perfazem cerca de 80 mil m
2 de área construída em um terreno de 46 hectares. Esse complexo, fadado a escombros pela extravagante proposta, constitui-se em patrimônio público de valor inestimável para a vida da cidade, principalmente pelos seus aspectos histórico, arquitetônico e cultural, o que impõe a necessidade de ser preservado.
Para justificar a inconcebível e tresloucada destruição, a consultoria propôs uma grande jogada: implantação de mega empreendimento imobiliário/comercial/turístico constituído de um complexo hoteleiro, teatros, anfiteatros, estacionamento para 6 mil veículos, prédios comerciais, shopping center, além de um novo centro administrativo para o Governo do Estado e Prefeitura,bosque com lago, e, naturalmente, uma nova "arena" para a realização da festa que deverá durar pouco mais de uma semana. Deram a esse delírio a denominação "Estádio das Dunas" que parece ter um custo estimado em R$ 1,2 a 1,5 bilhões e que poderia ser concretizado por meio de uma hipotética Parceria Publico Privada, onde o Parceiro Publico (Governo) entraria com a gleba que é um bem real e o Parceiro Privado (Investidores) participaria com a obrigação de fazer. (ou não fazer).
No cenário atual, abalado por uma crise financeira sem precedente e sem perspectiva concreta de seus efeitos e de sua duração, torna-se arriscado acreditar-se na mirabolante proposta apresentada, inclusive porque é fundada em protocolo de intenções (que não é garantia de nada) e maquete eletrônica (que é apenas recurso ilustrativo, embora a volumetria virtual da que foi publicada nos jornais permita vislumbrar-se uma dimensão aproximada da gigantesca área que se propõem a construir).
Ao se visualizar a retro referida maquete tornada pública, percebe-se que as intervenções sugeridas na proposta levam a uma densidade demográfica flutuante com media altíssima, o que pressupõe um insuportável poder de degradação ambiental, por tratar-se de área situada sobre lençol freático superficial, sem qualquer sistema de esgoto sanitário e com drenagem precária. Chama-se ainda a atenção, como conseqüência dessa alta densidade, para o sério agravamento do já caótico congestionamento do trânsito e do tráfego na área em questão, por estar situada no chamado "coração da cidade", entre os dois maiores eixos viários de penetração no tecido urbano e principais vetores do seu crescimento e expansão para o sul da capital.
A cortina usada para mascarar essa ousadia perigosa tem uma denominação mágica, Copa 2014. Na expectativa de que Natal venha a ser premiada como sub-sede no evento, este se traduziria em 2 a 3 jogos de pouca importância, com ingressos de preços proibitivos para o povão, com 10 dias de turistas pelas ruas, sujeitos a assaltos, muito oba-oba, muita televisão, e depois a cidade voltaria à rotina de sempre. Enquanto isso, as cidades que efetivamente irão exibir as fases mais importantes da copa, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, estão apenas adequando suas "arenas", todas mais antigas do que o estádio "Machadão", nada vão demolir, só acrescentar, demonstrando bom senso e equilíbrio, enquanto Natal, mais carente de tudo e em constante estado de calamidade (vem aí o inverno), se veja afogada na lama desse devaneio megalomaníaco de entrar na festa com a fantasia mais cara entre as demais.
Num país corroído pelo maior surto de corrupção e irresponsabilidade de sua historia, não é surpreendente que, sob a égide de uma obscura forma de parceria (PPP), se utilize de um patrimônio público para beneficiar interesses privados, em desfavor dos habitantes locais que são os legítimos donos desse patrimônio. Verdadeiramente não se pode explicar o reverso da lógica, ao fazerem-se as coisas pelo maior preço não pelo menor valor. Há de se supor que existe muita coisa obscura a ser apurada nessa estória.
A
Folha de São Paulo e a
Tribuna do Norte, de Natal, já haviam levantado suspeitas de graves irregularidades na contratação de empresas privadas de consultoria e/ou projetos arquitetônicos nas cidades de Manaus, Salvador, Rio Branco, Cuiabá, Belém, Goiânia, Natal e Fortaleza, visando suas candidaturas a sediar jogos da copa de 2014, todas sem licitação, em desacordo com a legislação vigente e, portanto, caracterizando atos de improbidade administrativa. A Folha de São Paulo chegou a levantar a existência de um suposto "esquema" que denominou de "farra do milhão" dando a entender que se trataria de algo parecido com o antigo "conto do bilhete premiado", pois essas consultorias estariam vendendo às "cidades convidadas" apenas "esperanças ilusórias". Isso se tornou um problema nacional pela quantidade de cidades enganadas, e deveria merecer rigorosa investigação pelos órgãos competentes. Nessa mesma linha, segundo levantamento da Tribuna do Norte, Natal foi a cidade que mais caro pagou pelo "convite" e, por isso, espera-se que seja confirmada como uma das pretendentes a participar da festa.
O que causa repulsa é a desfaçatez dos porta-vozes do Governo de tentarem, por todos os meios, iludir a parcela mais incauta da população fazendo-a acreditar na promessa falaciosa de que esse grande "negócio" seria redenção de sua cidade, que o novo paraíso estaria por vir, sem favelas, sem prostituição infantil, sem drogas, com saúde publica para todos, com segurança, saneamento básico, drenagem, escolas e até metrô de superfície ou seja, as sistemáticas calamidades que sempre afligiram sua população seriam coisas do passado. E ainda mais, sem custos para o erário, fazendo crer que os parceiros estrangeiros ou nacionais que aqui aportassem, o fariam, segundo os representantes do "Comitê", com a intenção única de fazer "filantropia" e com a promessa de tudo bancar, ficando o "Comitê" apenas com a responsabilidade da cessão do domínio útil da gleba de 46 hectares por 30 anos, após o que, seria o acervo devolvido ao domínio integral da comunidade, inclusive as benfeitorias que viessem a ser realizadas
Será possível acreditar que um "negócio" recheado de tantas "benesses" e que envolve bilhões de dólares possa prosperar em um ambiente de crise internacional? A sociedade tem que estar atenta, e tomar decisões antes que a fúria demolidora dos cortesãos instalados no poder acione o "detonador dos explosivos" e mande tudo pelos ares.
É imperioso que o suposto projeto básico de engenharia e arquitetura do "Estádio das Dunas" e o Contrato de Comodato (ambos desconhecidos) sejam rigorosamente analisados por todos os segmentos da comunidade em todos os seus aspectos - histórico, culturais, jurídicos, econômicos, financeiros, técnicos, urbanísticos, ambientais, paisagísticos, e, principalmente, o diagnostico ambiental e relatórios de impactos de trânsito e de vizinhança -, e que venham estes documentos a passarem pelo crivo da análise e da fiscalização dos entes responsáveis por esse processo, especialmente pelas Promotorias Públicas específicas e, quando se impuser, pelos organismos policiais especializados em desvendar esses "mistérios" que levam à espoliação do patrimônio de uma cidade. Assim, torna-se impossível dar-se crédito a um projeto que nasce da destruição desnecessária e perversa da memória de um povo, promovida por gestores públicos que usam meios ignóbeis para enganá-lo. É preciso ter-se em conta que, numa Democracia, nada pode ser feito sem a concordância do povo, na sua prerrogativa de legitimo proprietário de todo o acervo da Nação.
Por fim, se não sobrasse qualquer argumento para conter essa aventura financeira irresponsável, bastaria lembrar que grande parcela dos habitantes desta cidade não tem como saciar sua fome, o que é imprescindível, pois fome compromete a vida e pode causar a morte.
O povo não deve se deixar levar por promessas enganosas, porque se os parceiros não puderem cumprir suas obrigações contratuais, corre-se o risco de herdar dessa alucinação apenas 46 hectares de escombros de uma demolição, que ficará como testemunha "ad perpetuam rei memoriam" da capitulação e negligência da sociedade ante a irresponsabilidade daqueles a quem delegou mandatos eletivos.
(*) Moacyr Gomes da Costa é arquiteto, autor do projeto do "Machadão" e do "Machadinho" e co-autor do projeto do Centro Administrativo do Estado (em parceria com o saudoso arquiteto Ubirajara Galvão), e ainda, Coordenador de 2 Planos Diretores da Cidade de Natal.